Uma certa atitude de contar histórias caracteriza as artes no final do século 20. Entram em cena as palavras de ordem como globalização e multiculturalismo, entram em cena a Aids, a clonagem genética, os aparatos virtuais. Sai de cena o comunismo, caem o muro de Berlim e a organização do mundo em dois grandes blocos equilibrados numa Guerra Fria. Entra em cena uma nova guerra étnica - a Guerra da Bósnia - e o mundo se reescreve em novas e titubeantes geografias.
Nesse contexto de insegurança histórica, e talvez também pelo próprio desgaste das linguagens artísticas marcadas pela abstração e pela tradição construtiva, artistas se voltam para um idioma pessoal, íntimo, marcado pela fisicalidade de seus corpos e por suas próprias histórias e memórias. A arte se torna um diário de intimidades. Em sintonia com essa sensibilidade estão dois novos e promissores artistas: José Rufino e Del Pilar Sallum.
Rufino, 33, paraibano de João Pessoa, formou-se em geologia para vasculhar os segredos de sua terra. Mas acabou fascinado por sua própria árvore genealógica. Adotou o nome do avô paterno, latifundiário nordestino, e incorporou a tarefa artística de resgatar e comentar sua própria história de vida. Entre sua jovem mas vasta produção estão obras que ele trata como uma espécie de expurgo, como na instalação com gaveteiros antigos, "inchados" e intumescidos com gesso, a que o artista chamou de Respiratio. Depois, foi a vez de Vociferatio, feita com escrivaninhas antigas, com pés fincados nas paredes. E ainda Lacrymatio, em que trabalha uma herança de cinco mil cartas, enviadas ao avô, com interferências de pinturas do artista. Sudoratio apresenta malas escancaradas, de onde se desprendem formas bojudas, como pingos grossos de gesso. Recentemente, ele criou uma série de pequenas esculturas em madeira, que lembram ex-votos, contendo objetos que ele recolheu no arquivo de sensações da própria história familiar.
A obra de Del Pilar, 45, é um prolongamento de seu próprio corpo. Nascida em São Paulo, mas vivendo em Campinas, ela começou a chamar a atenção especialmente nos últimos dois anos, criando esculturas de fios metálicos que são o resultado do molde (que passa a registrar a ausência) de partes de seu corpo.
Dona de um intimismo profundo, quase constrangedor, Pilar trabalha com o prolongamento de seu corpo, batizando suas obras de Ataduras. A artista molda fios metálicos, compulsivamente ao redor de suas mãos e dedos, que se tornam moldes. Desenformados, os fios se tornam passado, e a forma escultórica resultante conta o vazio de um corpo e um tempo que já passou. Outro de seus trabalhos, Impressões, reproduz "esculturas" de seu próprio polegar, repetidas incessantemente, em forma côncava e convexa. A artista também prepara novas obras com seus fios de cabelo.
Com um currículo que inclui mostras no Museu de Arte Contemporânea de São Paulo, Campinas e Berlim, os dois farão parte do Panorama da Arte Brasileira, que acontece no MAM de São Paulo, em novembro.
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