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A energia psíquica e suas metamorfoses.

Nise da Silveira

Seguindo o método de acompanhar cronologicamente, tanto quanto possível, o desenvolvimento da obra de Jung em estreita conexão com sua biografia, começaremos este texto comentando o livro Símbolos de transformação, publicado em 1912, com o título de Transformações e símbolos da libido. Foi nesse livro que Jung apresentou, pela primeira vez, seu conceito de "energia psíquica". Enquanto Freud atribui à libido significação exclusivamente sexual, Jung denomina libido a energia psíquica tomada num sentido amplo. Energia psíquica e libido são sinônimos. Libido é apetite, é instinto permanente de vida que se manifesta pela fome, sede, sexualidade, agressividade, necessidades e interesses os mais diversos. Tudo isso está compreendido no conceito de libido. A idéia junguiana de libido aproxima-se bastante da concepção de "vontade", segundo Schopenhauer. Entretanto Jung não chegou a essa formulação através dos caminhos da reflexão filosófica. Foi a ela conduzido pela observação empírica, no seu trabalho de médico psiquiatra. Será inevitável, portanto, que de novo penetremos no terreno da psiquiatria. Atento à conduta do doente, pergunta Jung: a perda do contato com a realidade, na esquizofrenia, resultaria da retração do interesse libidinal, na acepção de interesse erótico? Freud sustentava esta opinião. Jung não aceitou que o contato com a realidade fosse mantido unicamente através de "afluxos de libido", ou seja, de interesse erótico. Verificava em seus doentes não só perda do interesse sexual, mas de todos os interesses que ligam o homem ao mundo exterior. Para estar de acordo com Freud seria, portanto, necessário admitir que toda relação com o mundo era, na essência, uma relação erótica. Isto pareceu a Jung "inflação" excessiva do conceito de sexualidade. Sua posição, desde o início, foi esta. Já no prefácio do livro Psicologia da demência precoce, havia escrito: "Fazer justiça a Freud não implica, como muitos temem, submissão incondicional a um dogma; pode-se muito bem manter um julgamento independente. Se eu, por exemplo, aceito os mecanismos complexos dos sonhos e da histeria, isso não significa que atribua ao trauma sexual infantil a importância exclusiva que Freud parece conceder-lhe. Ainda menos isso significa que eu coloque a sexualidade tão predominantemente no primeiro plano ou que lhe atribua a universalidade psicológica que Freud lhe atribui, dado o papel enorme que, decerto, a sexualidade desempenha na psique". Note-se que este prefácio está datado de julho de 1906.
Daí se vê que entre Freud e Jung não existiram relações do tipo mestre-discípulo, segundo se repete tão freqüentemente. A verdade é que Jung nunca deu sua adesão total a Freud.
Quando leu uma das primeiras obras de Freud – A histeria e a interpretação dos sonhos, embora fosse ainda muito jovem, Jung apercebeu-se de que estava diante de descobertas importantíssimas. Ficou fascinado pelos dinamismos do inconsciente que se revelavam a seus olhos. E tanto na prática clínica quanto na experimentação psicológica comprovou a existência dos mecanismos descritos por Freud, mas desde logo suas interpretações nem sempre coincidiram exatamente com as interpretações do mestre de Viena. Apesar de divergências abertas ou latentes, os anos de colaboração estreita entre Freud e Jung (1907-1912) foram, sem dúvida, muito fecundos para a psicanálise. O desentendimento decisivo, porém, acabou surgindo. Foi provocado pelo conceito de libido, entendida como energia psíquica de uma maneira global, apresentado por Jung em Metamorfoses e símbolos da libido. Eis um livro extremamente denso, porém de leitura apaixonante. Seu tema é o comentário psicológico dos poemas e outros escritos de Miss Miller, um caso fronteiriço de esquizofrenia. Mas em torno deste núcleo, as idéias borbulham num verdadeiro festival de atividade criadora excedendo de longe o objetivo primeiro. As imagens poéticas de Miss Miller dão lugar a abundantes paralelos mitológicos e ao aprofundamento de suas significações, resultando daí uma tal profusão de dados que o leitor poderá talvez sentir-se como alguém perdido numa espessa floresta. Carregando tantas inovações, Metamorfoses e símbolos da libido provocou enorme celeuma e não poucos mal-entendidos. A fim de esclarecer e desenvolver seu conceito de libido, apresentado neste livro junto a várias outras idéias, Jung escreveu um trabalho à parte denominado Sobre a energia psíquica.
A energia psíquica (libido) "é a intensidade do processo psíquico, seu 'valor psicológico'". Não se trata de valor em acepção moral, estética ou intelectual. Valor tem aqui o significado de "intensidade", "que se manifesta por efeitos definidos ou 'rendimentos psíquicos'". Energia psíquica é um conceito abstrato de relações de movimento, algo inapreensível, um X, comparável (mas não idêntica) à energia física.
Jung construiu para a psicologia uma interpretação nos moldes da teoria energética das ciências físicas. Fome, sexo, agressividade seriam expressões múltiplas da energia psíquica, tal como calor, luz, eletricidade são manifestações diferentes da energia física. "Do mesmo modo que não ocorreria ao físico moderno derivar todas as forças, por exemplo, somente do calor, também o psicólogo deve preservar-se de englobar todos os instintos no conceito de sexualidade".
Jung concebe o psiquismo (consciente e inconsciente) como um sistema energético relativamente fechado, possuidor de um potencial que permanece o mesmo em quantidade através de suas múltiplas manifestações, durante toda a vida de cada indivíduo. Isso vale dizer que, se a energia psíquica abandona um de seus investimentos virá reaparecer sob outra forma. No sistema psíquico a quantidade de energia é constante, varia apenas sua distribuição. "Nenhum valor psíquico pode desaparecer sem que seja substituído por outro". Se um grande interesse por este ou aquele objeto deixa de encontrar nele oportunidade para aplicar-se, a energia que alimentava o interesse tomará outros caminhos: surgirá talvez em manifestações somáticas (palpitações, distúrbios digestivos, erupções cutâneas etc.), virá reativar conteúdos adormecidos no inconsciente, construirá enigmáticos sintomas neuróticos. Esses vários fenômenos serão a expressão de metamorfoses da mesma energia. Resumiremos, para exemplificar, um caso clínico simples, descrito por Jung em Problemas da alma moderna. Trata-se de um oficial do exército suíço, com 27 anos, que sofre de violentas dores na região precordial e no calcanhar esquerdo. Nada foi encontrado, somaticamente, que justifique esses sintomas e o doente não relaciona seu aparecimento a qualquer ocorrência especial. Interrogado sobre seus sonhos, lembra-se de um sonho recente que o impressionou pela estranheza: "eu ia andando por um campo aberto quando de repente pisei numa serpente. A serpente mordeu-me no calcanhar e senti-me como se estivesse envenenado".
Pouco antes de surgirem os sintomas, a namorada desse rapaz ficou noiva de outro. Ele reagiu tomando atitude de jactância. A moça era uma tola e ele arranjaria facilmente dez namoradas mais interessantes. Isso não tinha nenhuma importância. Entretanto, perdido o objeto exterior de investimento, reprimida, a libido vem reaparecer sob a forma de sintomas somáticos. Exprime-se através de dores na região cardíaca o que, aliás, não é nada de extraordinário, pois os poetas de todos os tempos já disseram que as penas de amor fazem doer o coração. No seu recuo, porém, a libido desceu ainda mais profundamente vindo dar vida à imagem pela qual vários mitos exprimiram certas experiências que o homem teve com a mulher através dos tempos: a mordedura da serpente. O jovem suíço encontrou-se com a serpente que Ísis colocou no caminho do grande deus Ra, para morder-lhe o calcanhar; encontrou-se com a serpente bíblica, tão estreitamente associada a Eva; encontrou-se com o princípio sedutor da mulher no seu aspecto perigoso. A libido fez-se imagem simbólica.

Fragmento de Jung vida e obra. Rio de Janeiro, José Álvaro Editor, 1974, pp. 41-49.
Nise da Silveira é psiquiatra, autora de Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro, Alhambra, 1985.

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