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Entrevista : Woody Allen


O ESPELHO DESCONSTRUÍDO


Woody Allen mal podia esperar, no dia em que concedeu esta entrevista, para ver Titanic. "É uma grande história, uma história fascinante, que sempre se prestou a bons filmes", diz ele, ainda sem ar depois da caminhada que o levou, em passo acelerado, da ilha de edição onde está montando seu futuro filme, Celebrity, até um salão privado do hotel Drake, no East Side de Manhattan, local escolhido para receber BRAVO! (brecha difícil de abrir na sua agenda, conseguida por meio de uma constelação de intermediários). "Eu adorei A Night To Remember, com Kenneth Moore, e sei o quão poderosa a história pode ser quando contada com imagens." Depois de recobrar o fôlego, ele segue: "Não vou deixar de ver só porque custou US$ 200 milhões. Deve haver um bom motivo para isso e eu, como cineasta, posso apreciar a dificuldade que deve ter sido para contar essa história para as platéias de hoje. Não, não esse é um filme que não quero perder". O que Allen perderia, se fosse possível, é o seu aniversário que, quando sentamos para conversar no Drake, entre goles de chá com limão e água mineral, ainda estava a uma semana de distância, no dia 1° de dezembro, e já provocava resmungos. "Por mim, não celebraria aniversário algum", diz. "Não entendo o porquê: é um contra-senso, você está celebrando o quê? O fato de estar um ano mais próximo da morte? Soon-Yi (a ex-enteada que, num rumoroso caso, tornou-se sua namorada e com quem Allen se casou em Veneza, na véspera do Natal) vai querer me levar para jantar com alguns amigos e eu vou tentar me comportar o melhor que posso, mas..." (A quem se aventurar a lhe dar um presente, Allen sugere suéteres - "porque são sempre úteis e eu não preciso de mais nada, mesmo".)

O cineasta gosta de entrevistas quase tanto quanto gosta de aniversários, mas comporta-se galantemente como ele explica, sua relutância em falar de seu trabalho vem mais da impaciência do que da timidez, como se a abordagem a posteriori fosse um gesto inútil, sem sentido, que esvaziasse o conteúdo daquilo que realmente importa. A seguir, Woody fala de sua vida e de seu filme, Desconstruindo Harry.


BRAVO!: Vamos logo tirar esta questão do caminho: Desconstruindo Harry é, de alguma forma, uma autobiografia?
Woody Allen: Eu sabia que ele seria visto como um documento da minha vida. Não é. Mas sei que é meio sem sentido insistir nesse ponto porque ninguém me leva a sério. A verdade é que não tenho os problemas do personagem central. Não tenho problemas de amigos que ficam furiosos por terem suas histórias usadas num filme meu. A verdade é que todos os meus filmes, mesmo aqueles que eram totalmente distanciados de mim, como Tiros na Broadway, foram vistos como obras autobiográficas, e os elementos desses filmes passaram a ser encarados como verdades a meu respeito. Bom, não são. Nem mesmo filmes como Manhattan e Noivo Neurótico. Noiva Nervosa, que são mais próximos de mim - esses dois eu escrevi trancado num quarto com Marshall Brickman, um outro roteirista. Juntos inventamos essas histórias, e agora elas passaram a ser documentos autobiográficos... Sei lá, podem até ser; da vida do Marshall não sei...


Se não é autobiográfico, então qual foi o ponto de partida para o filme?
Ansiedade, como sempre. Eu termino um projeto e fico imediatamente ansioso, querendo saber o que vou fazer depois. Neste caso, a melhor idéia que me ocorreu foi como seria interessante e divertido explorar a vida de um homem que é tão ansioso, desajustado e infeliz que só consegue se relacionar com personagens fictícios que não são capazes de existir na sua vida real. O curioso é que, se eu parar e olhar para o meu trabalho passado - o que não faço -, verei muitos pontos em comum com outros filmes meus. Em A Rosa Púrpura do Cairo, por exemplo, a personagem interpretada por Mia (Farrow, ex-musa e mulher de Allen, N.R.) também não conseguia viver no mundo real, mas conseguia se relacionar com um personagem que saía da tela. Imagino que existam temas recorrentes no meu trabalho, mas, sinceramente, eu não os abordo de forma consciente porque nunca revejo meu trabalho. Fico feliz só pelo fato de que consegui ter uma idéia e a idéia era engraçada.


Por que você não revê seu trabalho?
Porque, para mim, uma vez que um filme está acabado, está acabado, e eu vou em frente. O desafio é o próximo. Quando um filme foi rodado, editado, sonorizado, finalizado, está pronto. Tenho de me preocupar com o que vem pela frente. Eu sei que, se eu for revê-lo, vou achar defeitos. Vou achar esta ou aquela cena que queria fazer de novo. E isso não ia me adiantar em nada, porque eu não teria essa oportunidade, e o que aconteceria é que eu iria ficar muito, mas muito infeliz. Na minha cabeça, tenho de pensar: fiz o melhor possível com este filme, agora cabe ao público apreciá-lo. E ir em frente.


Você ainda é muito ansioso?
Ansioso? Eu? Quem disse que sou ansioso? Hummm, sério agora: consegui fazer algum tipo de trégua com minhas limitações. Ainda tenho os mesmos problemas que tive minha vida inteira. Eu poderia muito bem ficar em casa e ser um recluso. Ainda tenho os mesmos problemas: ainda não passo em túneis, ainda não gosto de elevadores, ainda tenho dificuldade com o contato social. Mas acho que estou bastante estável e desenvolvi algumas estratégias para lidar com meus problemas e poder tocar minha vida.


O quê, por exemplo?
Consegui implantar um sistema por meio do qual eu faço meus filmes praticamente sem ter de viajar. Posso viver toda a minha vida sem sair do meu bairro em Nova York. Moro numa região que tem tudo o que eu preciso para sobreviver: restaurantes, minha ilha de edição, cabines de exibição, cinemas, teatros. Posso ir andando a qualquer parte e estar em casa rapidamente em caso de uma emergência. Continuo sem gostar do campo e evito ao máximo viajar. Eu sei que levo uma vida altamente limitada. Não posso aproveitar certas oportunidades que se apresentam naturalmente para mim. Não posso participar de um filme que está sendo rodado em Tânger ou dirigir uma ópera ou uma peça numa cidade estrangeira, num outro país onde serei obrigado a passar algumas semanas, alguns meses. Não consigo. Sei que estou perdendo muito, mas não consigo. Talvez em outra vida. Não nesta.

Não olhar para trás e não ter noção do conjunto do seu trabalho não prejudica o seu impulso para fazer cinema? O que faz com que você continue?
Eu gosto da coisa. Gosto sinceramente. Para mim, todos os meus filmes são um não-evento. São uma coisa natural: é o que eu faço. Eu sei que os distribuidores querem que eu dê entrevistas e promova meus filmes, porque isso ajuda a vender ingressos. Mas, para mim, eles não são um acontecimento porque sou um trabalhador e isso é o meu trabalho. Por mim, eu acabaria um filme e iria para casa. Sem ir a premières, sem dar entrevistas, sem ler as críticas, sem saber qual foi a bilheteria. Não dou festas quando começo as filmagens nem quando termino. É tudo muito simples comigo, não preciso de distrações: é o trabalho que me sustenta.


Você se definiria como um workaholic, maníaco por trabalho?
Não acho que seja. Sei que tenho uma reputação assim porque estou trabalhando constantemente, mas, na verdade, meu ritmo de trabalho é leve. Tenho muito tempo livre entre um projeto e outro. Tenho tempo de sobra para ir ao cinema, ao teatro, ler, praticar meu clarinete e tocar com minha banda. Tenho tempo de ficar em casa lendo ou escrevendo, ver um jogo de futebol no domingo, um jogo de basquete no sábado. Os verdadeiros workaholics dessa indústria trabalham nos fins de semana e tarde da noite. No meu set tudo pára às seis e meia da tarde porque quero estar em casa a tempo de sair com meus amigos para jantar ou ver um jogo ou ver TV ou ir ao teatro; e acordar cedo no dia seguinte, andar na minha esteira rolante, praticar meu clarinete. Isso não é ser maníaco por trabalho. Se você produz um bom volume de trabalho por dia - não um absurdo, mas um bom volume, e todo dia -, você consegue realizar muito mais. Isso é um contraste com pessoas que, na verdade, não trabalham. Eles acham que sou um workaholic porque eles fazem um filme e durante três anos não fazem mais nada - só saem para jantar e vão a festas por conta desse filme, e não fazem mais nada. E aí, quando querem fazer outro filme, têm de sair puxando o saco dos atores e levando agentes para jantar. Eu não tenho esse problema.


De fato, você consegue todos os grandes nomes de Hollywood para seus filmes. Como você faz?
Eles querem aparecer nos meus filmes. Querem de verdade, mas há um catch-22: eles só vão fazer meu filme se não tiverem uma oferta de outro trabalho, mais bem pago, para o mesmo período. Se algum outro filme está oferecendo US$ 6 milhões, US$ 10 milhões de cachê, eu posso esquecer. Mas se estão entre um e outro projeto, e não estão perdendo dinheiro, então eles ficam felizes em participar.


A que você atribui a sua completa independência em relação a Hollywood?
Tenho sorte, muita sorte. Outro dia eu estava conversando sobre isso com Marty (Martin Scorsese). Desde o início da minha carreira eu tive a sorte de lidar com executivos humanos e sensatos, que simplesmente me deram o dinheiro da produção e me deixaram em paz. Eu nunca tive de lutar, nunca tive executivos querendo ler meu script e se meter nas filmagens. Nunca. Só posso creditar isso à sorte, honestamente. Hoje acredito que eu e a maioria dos grande estúdios estamos em business muito diferentes. Eu faço filmes. A maioria dos estúdios está fazendo investimentos gigantescos, que custam US$ 100 milhões e cujo único objetivo é gerar muito dinheiro e criar oportunidades de merchandising. Na maior parte dos casos não existe nem sequer a tentativa de fazer arte, nem mesmo arte popular. Não foi essa a minha experiência de cinema, quando eu era um moleque nos anos 40. Não foi o que eu aprendi vendo os filmes de diretores americanos e estrangeiros. Eu cresci com a impressão de que o cinema era arte.

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