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MOTO-CONHECIMENTO - FINAL

A razão da máquina

Mas eu me lembro que uma vez, em frente a um bar em Savage, no Estado de Minnesota, num dia de calor infernal, quase me traí. Ficamos no bar mais ou menos uma hora e quando saímos as motos estavam tão quentes que quase nem se podia sentar nelas.
Eu ligo a minha e quando estou prontinho para sair vejo o John acionando repetidamente o pedal do kick. O fedor de gasolina é tão forte que se diria estarmos ao lado de uma refinaria. Eu digo isso, achando que é suficiente para informá-lo de que o motor está afogado.
- Também estou sentindo o cheiro - confirma ele, continuando a quicar. E fica ali, quicando, quicando, saltando e quicando, e eu sem saber mais o que dizer. Por fim, ei-lo todo esbaforido, com a cara pingando de suor, sem poder tentar mais nem uma vez. Sugiro, então, que retire as velas para que elas sequem e os cilindros arejem, enquanto a gente toma outra cerveja.
Ah! meu Deus! E não é que ele não queria se dar a todo aquele trabalho?!
- Mas que trabalho?
- Ah, tirar as ferramentas, essas coisas todas. A máquina não tem razão nenhuma para não pegar. É novinha em folha, eu sigo as instruções ao pé da letra. Veja, está com o afogador aberto, como eles recomendam.
- Afogador aberto?
- É o que recomendam as instruções.
- Isso a gente faz quando o motor está frio!
- Mas estivemos no bar uma meia hora, pelo menos - justifica ele.
Aquilo mexeu comigo.
- John, hoje está quente. O motor leva mais tempo para esfriar mesmo num dia gelado.
Ele coça a cabeça.
- Bom, mas por que não avisam isso no manual?
Fecha o afogador e a moto pega na segunda tentativa.
- É, acho que era isso mesmo - reconhece, alegremente.
Eu poderia ter pensado que essa maneira de agir do John e da Sylvia se relacionava apenas com as motocicletas, mas, mais tarde, descobri que incluía outras coisas´

Inventando hippies

Certa manhã, na cozinha deles, enquanto esperava que se aprontassem para uma de nossas viagens, percebi que a torneira da pia estava pingando e me lembrei de que já a vira pingando há um bom tempo. Falei com o John, que disse ter tentado consertá-la, trocando a arruela, sem obter nenhum resultado. E ficou nisso. Subentendia-se que o assunto terminava ali. Se a gente tenta consertar uma torneira e o conserto não dá certo é porque nosso destino é viver de torneira quebrada.
Senti, então, que aquilo combinava com a história da manutenção das motocicletas; aí acendeu-se na minha cabeça uma daquelas lampadazinhas e eu exclamei: "Aaaahhhh!"
Não se trata da manutenção das motocicletas, nem das torneiras. É a tecnologia como um todo que eles não aceitam. Então, todas as peças se encaixaram nos seus devidos lugares e eu entendi tudo. A irritação de Sylvia com um amigo que achava a programação de computadores um trabalho "criativo". Os desenhos, as pinturas e as fotos sem nenhum vestígio de tecnologia.
É claro que Sylvia não ia demonstrar a raiva que sentia da torneira, pensei. A gente sempre reprime uma raiva momentânea contra coisas que detestamos de maneira profunda e incondicional. É claro que John vai se esquivar sempre que surgir o assunto do conserto das motos, mesmo que isso, obviamente, o faça sofrer. É tudo tecnologia.
É claro, notório, cristalino! Quando a gente percebe, fica bem mais simples. Fugir da tecnologia para o interior, em busca de sol e do ar fresco é a principal razão pela qual viajam de moto. Creio que mencioná-la exatamente no lugar onde eles pensam que finalmente escaparam da tecnologia literalmente os paralisa. Eis porque a conversa sempre esfria quando se toca no assunto.
Não é difícil assumir tal posição. É só entrar na zona industrial de uma cidade grande que se poderá contemplar a tecnologia, nua e crua, cercada por altas cercas de arame farpado, portões trancados, avisos de ENTRADA PROIBIDA, além dos quais se divisam, envolvidas pelo ar poluído, estranhas formas de metal e tijolos, de propósito desconhecido, cujos donos jamais serão vistos.
E, assim, resta um sentimento de hostilidade, que creio ser o que se manifesta na maneira de pensar de meus amigos; não há outra explicação. Qualquer coisa que se relacione com válvulas, eixos ou chaves faz parte daquele mundo desumanizado que eles querem esquecer e do qual não querem fazer parte.
Inventaram e continuam a inventar clichês e estereótipos como beatnik ou hippie para designar os antitecnológicos, os oposicionistas do sistema. Todavia, não se transformam indivíduos em massas simplesmente criando uma expressão massificadora.

Buda em todo lugar

John e Sylvia não pertencem a uma massa, assim como a maioria daqueles que seguem o mesmo caminho. Eles parecem revoltar-se justamente contra a massificação. E como sentem que a tecnologia tem muito a ver com as forças que estão tentando massificá-los, não gostam disso. Até agora, em geral, essa resistência tem sido passiva: fuga para as áreas rurais, quando possível, e coisas parecidas. No entanto, não precisariam ser tão passivos assim.
Não concordo com eles em relação à manutenção das motos, não porque não simpatize com seus sentimentos a respeito da tecnologia. Acho apenas que essa fuga e esse ódio à tecnologia são contraproducentes. O Buda, a divindade, mora tão confortavelmente nos circuitos de um computador digital ou nas engrenagens de uma transmissão de motocicleta quanto no pico de uma montanha ou nas pétalas de uma flor. Pensar de outra maneira é aviltar o Buda - o que significa aviltar-se a si mesmo. Eis exatamente o que desejo explicar nesta chautauqua.
Embora não haja mais pântanos, o ar está tão úmido que a gente pode olhar diretamente para o disco amarelo do Sol, como se houvesse fumaça ou poluição na atmosfera. Só que, agora, estamos atravessando campos verdes.
As casas das fazendas são limpas, brancas, diferentes. E não há fumaça, nem poluição.

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