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Augusto Boal - Entrevista concedida a Veja (17/11/1976), a Paulo Sotero, no ano em que exilou-se em Lisboa.- Final

Veja - Depois de todas essas experiências, como você vê, hoje, o teatro popular na América Latina?
BOAL - Devido à repressão existente na maioria dos países, é um trabalho cada dia mais difícil. Mas em alguns países há uma quantidade considerável de grupos de teatro popular. Por exemplo, no México, existem pelo menos sessenta grupos de vários pontos do país que fazem parte de uma organização chamada Centro Libre de Investigación Teatral e Artística. Na Colômbia e na Venezuela há também alguns movimentos importantes. Mas, de um modo geral, todos esses grupos fazem o teatro para o povo. Em Cuba, existe uma experiência muito interessante feita por um grupo chamado Escambray. Seus integrantes vão todos os anos para o interior e ficam seis meses vivendo e trabalhando com os camponeses. A partir dessa experiência, eles montam uma ou duas peças sobre temas da região e percorrem o país. Eu acho que isso é um passo adiante. Mas ainda não basta. Eles trabalham com os camponeses durante um tempo. Mas não são camponeses. Quer dizer, continuaram a ser os artistas que representam para espectadores passivos. Eu, por exemplo, gosto de fazer peças a favor do proletário e dos oprimidos em geral. Mas as minhas peças nunca poderão ser as de um proletário. Minha última peça, Liza, que Chico Buarque está musicando, é a favor da libertação feminina. Mas de maneira nenhuma substitui a peça que uma mulher vai ter de escrever sobre o tema.

Veja - E o que você pensa das outras formas de fazer teatro?
BOAL - A gente vai ficando meio maduro e vendo melhor as coisas. Antigamente eu era muito sectário. Achava que, se num determinado momento tal forma de teatro estava dando bom resultado, então não se deveria fazer nenhuma outra, pois seria errada. Agora não penso mais assim. É claro que, se estou envolvido num trabalho, quero me concentrar prioritariamente nele. Mas isso não invalida o trabalho que outras pessoas estão fazendo e que tem também a sua eficácia. Acho que é tão nocivo dizer uma mentira num teatro dito convencional como num teatro dito popular. A verdade é sempre útil, quer seja dita numa tarriada do Peru ou num teatro do centro de São Paulo. Agora, as pessoas que trabalham para um público burguês sofrem muito mais uma espécie de sedução da burguesia. Muitos artistas que se isolam e ficam somente na chamada vida artística terminam se alienando. Sei disso por experiência própria e acho que esse problema não é só do artista, mas também do médico, do engenheiro, do estudante, do jornalista, de todo mundo. O contato mais íntimo com o povo é
fundamental para nos mostrar certas coisas da vida que não vemos.

Veja - Você tem acompanhado o movimento teatral no Brasil? Qual sua opinião sobre o que hoje se faz?
BOAL - As peças publicadas em livro me chegam facilmente. Considero, por exemplo, Gota d'Agua, de Chico Buarque e Paulo Pontes, uma peça excelente e acho extraordinário que esteja sendo levada no Rio. O teatro no Brasil, apesar das condições difíceis em que é feito, está conseguindo chegar ao palco. E isso é positivo. Não acontece no Brasil o que aconteceu em Portugal. Aqui, no tempo da ditadura salazarista, diante da impossibilidade de montar as peças, os autores se habituaram a escrever textos para publicar em livro, peças para serem lidas e não vistas. O resultado é que há textos excelentes, mas simplesmente impossíveis de montar. No Brasil, os dramaturgos estão escrevendo para o palco, e devem continuar assim. Mas também é verdade que a situação tem levado alguns autores brasileiros a escreverem peças de chave, que, para ser bem compreendidas, exigem uma ampla informação sobre certos fatos recentes, que somente o público brasileiro conhece. Eu cito o caso de Um Grito Parado no Ar, de Gianfrancesco Guarnieri. É uma peça muito boa e que no Brasil deve ter tido um significado extraordinário. Cecília, minha mulher, e eu nos entusiasmamos, traduzimos para o espanhol e tentamos convencer alguns empresários argentinos a encenarem. Mas todos se recusaram dizendo que não entediam a peça. E isso acontece com um bom número de textos, impossíveis de ser entendidos fora do Brasil. Embora o teatro brasileiro possa ter se enriquecido em outros aspectos, perdeu nos últimos anos o conteúdo político aberto e explícito que tinha. E isso obviamente não por culpa dos
dramaturgos, mas dos senhores da Censura, que castraram todo um filão riquíssimo do nosso teatro e que não tinha igual na América Latina.

Veja - E o que você acha de autores, como Bráulio Pedroso, Dias Gomes e Lauro Munis, escreverem novelas para a televisão, com grande sucesso de audiência?
BOAL - Em princípio, nós não devemos recusar nenhum meio de informação. Se me dessem o Scala de Milão para trabalhar eu aceitaria sem o menor constrangimento - o problema é que eles não me dão o Scala de Milão para fazer o que eu quero. Assim, não rejeito a televisão só por ser televisão. O problema é que, para a televisão funcionar, ela necessita de um financiador. Se você depende de um financiador que vai impor temas, acho que você deve se recusar. Mas, se você puder dizer o que quiser ou pelo menos aproximadamente aquilo que quiser, então acho perfeito fazer novela ou seja lá o que for na televisão. Mas quem sou eu para daqui de longe e depois de tanto tempo julgar o que está sendo feito agora, que eu não vejo? Eu sei que as pessoas que você mencionou são pessoas honradas ou pelo menos eram. E não tenho nenhuma razão para supor que deixaram de ser.

Veja - Qual sua opinião sobre o teatro português hoje e quais seus planos para Portugal?
BOAL - Aqui não existe praticamente nada em teatro popular. Foi muito tempo de ditadura. Há gente com muito talento, autores e atores, há até condições favoráveis para o trabalho, pois o governo tem dado boas subvenções à atividade teatral. Mas não há produção. Somente em Lisboa, por exemplo, há quinze grupos inteiramente subvencionados. Mas, se você quiser ir ao teatro, encontra apenas três ou quatro peças em cartaz. Eu aceitei um convite da secretaria de Estado da Cultura para vir trabalhar aqui e pretendo realizar o trabalho em três níveis: o primeiro será um seminário de dramaturgia, para autores que já produziam e para os novos. Depois virá o laboratório de interpretação, visando desenvolver novas técnicas com os atores e dar um caráter mais permanente à sua preparação. Paralelamente será lançada a idéia de se fazer uma Feira Portuguesa de Opinião, nos mesmos moldes da que organizei em São Paulo em 1968 e da Feira Latino-Americana de Opinião, realizada depois em uma igreja em Nova York.

Veja - Como ficou seu plano de organizar uma trupe latino-americana para percorrer as Américas?
BOAL - Essa idéia não chegou a ser executada agora mas poderá ser retomada em parte num novo projeto a ser realizado juntamente com Jacques Lang, diretor do Festival de Nancy. Eu e o argentino Carlos Trafic pensamos em organizar em Nancy uma Fête Latino-Américaine, que percorreria depois várias cidades da Europa. Pretendemos apresentar dois ou três grupos bem representativos de teatro popular da América Latina.
E, como há na Europa centenas de atores, autores, compositores e cantores latino-americanos completamente parados, pensamos também em organizar com eles um centro latino-americano para realizar tudo o que não se pode fazer na América Latina. Cada manifestação seria sempre acompanhada de um debate sobre a realidade econômica e política do país ou países a que ela se refere. Focalizaríamos as três faces da cultura latino-americana que nos interessam: a cultura da resistência, dos que ficaram; a cultura da diáspora (porque existe uma verdadeira diáspora latino-americana, hoje); e, por último, a cultura recuperada, que os europeus absorveram da América Latina, transformando para seu consumo. É o caso, por exemplo, de alguns encenadores argentinos, como Víctor García e Jorge Lavelli, que hoje são na verdade excelentes diretores de teatro francês.

Veja - Você pensa em voltar para o Brasil?
BOAL - Claro que penso. E não existe nenhuma razão para que um dia eu não volte. Toda minha atividade sempre foi bastante aberta. Bastante clara. Nunca cometi nenhum ato que necessitasse da clandestinidade. Sempre fiz tudo à luz do dia. É claro que minhas opiniões são frontalmente opostas às opiniões do governo brasileiro neste momento. Por isso, sinto que atualmente meu trabalho pode ser mais útil fora do Brasil. Mas acho que posso continuar realizando um trabalho através de meus livros e peças. Gostaria muito que fossem publicados com mais freqüência, e também que minhas peças fossem encenadas. Duas delas, aliás, passam facilmente pela Censura: Liza, que fiz com Chico Buarque, e Tempestade, baseada na peça de Shakespeare.

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