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Antônio Callado - Entrevista concedida a Veja (14/07/1976), - Parte 1


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Veja - De Quarup a Bar Don Juan pode-se detectar um itinerário pautado pelo enfoque
político. Seu novo romance continua nessa linha?
CALLADO - Sem dúvida. Não penso, porém, que este seja o único caminho. Respeito quem separa a posição política da obra literária. Alain Robe-Grillet, por exemplo, o papa do nouveau roman francês, quando elaborou junto com Alain Resnais o filme O Ano Passado em Marienbad, não aceitou a sugestão deste de que uma personagem dissesse em determinada cena Algérie, visando a dar uma pitadinha de política (a França, na ocasião, vivia a guerra com a Argélia). Robe-Grillet se recusou a fazê-lo no filme, mas era um homem que lutava, como intelectual, ao lado da Argélia, apoiando a causa de Jean-Paul Sartre. Achava, todavia, que sua arte não tinha nada a ver com aquilo.

Veja - Essa atitude, num país do Terceiro Mundo, como o Brasil, lhe parece aceitável?
CALLADO - Sim, desde que o intelectual também participe da vida do país. Não acho que seja absolutamente obrigatório o autor fazer uma obra de cunho político. O que me choca é a tendência crescente de os nossos grupos intelectuais se alienarem da vida do país. Quanto a mim, ainda que pudesse ou sentisse possibilidade de fazer uma obra literária inteiramente abstrata, jamais conseguiria ir contra minha natureza: preciso, sempre, exprimir alguma coisa.

Veja - Quer dizer que você invalida certa produção hermética da literatura moderna que
poucos conseguem entender?
CALLADO - Não. Tenho consciência de que é importante esse tipo de literatura ilegível, por sua função lingüística. Mas para mim, como escritor, isto cheira a uma subversão na ordem artística e literária das coisas. É claro que respeito pessoas como James Joyce ou Stéphane Mallarmé, que têm realmente dentro de si uma vocação literária que toma rumos definidos. Eles estão querendo dizer algo. Mallarmé, por exemplo, é a coroação de um processo de abstração que se fez em um homem de extraordinária sensibilidade extramundana. Até sua prosa dá a impressão de um anjo gaguejando uma língua humana. Isto é comovedor, é como se ele estivesse realmente procurando sair de um mundo muito mais fino para nos dizer algo. Nele, é fácil constatar um enorme interior. O que critico ferozmente é o oposto, ou seja, a
pessoa que parte para fazer deliberadamente uma obra incomunicável.

Veja - Parece que muita gente está se esquecendo de que literatura ainda é comunicação, ainda pressupõe o leitor. Correto?
CALLADO - Claro, e isso é influência dos movimentos literários franceses, do noveau roman ao grupo Tel Quel. O que não se entende, também, é que são raríssimas as pessoas como Mallarmé. Então acontece o oposto: em vez de anjo, você é um sujeito de carne e osso que adora o Mallarmé, e esta é uma ótima razão para você resolver dar uma de Mallarmé. O resultado é uma baboseira indescritível. Não é o caso dos grandes, que têm um alto coeficiente de abstração, mas revelam ao mesmo tempo uma incrível luminosidade e tensão interna. Não acho que seja necessário fazer uma pregação clara. Basta despertar nas pessoas uma certa sensibilidade exacerbada que as leve a agir.

Veja - Esta seria a função maior da literatura?
CALLADO - Sim, a literatura é esta vida multiplicada que fornece uma descarga de energia ideológica, que dá um impulso de ação. Que ação? É a vontade de atuar sobre a sociedade que está em volta. Não se faz uma coisa em nome de nada. Esse nadismo eu realmente não entendo, nem o papo de Ah, o mundo é assim mesmo, deixa pra lá.

Veja - Por quê?
CALLADO - É fundamental a atuação positiva do intelectual num país como o Brasil, vitimado até hoje por um domínio das elites absolutamente fantástico, acima do jogo político da Arena e do MDB. A grande massa, no Brasil, não sabe rigorosamente nada, apenas sente fome. Por isso não acredito que o sujeito que lê e que por obrigação está ligado a este país possa desconhecer isso, ainda mais se lida com idéias.

Veja - Daí a necessidade de se fazer uma literatura política?
CALLADO - Sim, porque o Brasil é muito despovoado do ponto de vista político. Mas é bom não esquecer que a condição básica para a criação artística em geral é a liberdade. Quanto a isso, acho que não pode haver dúvidas na cabeça de ninguém. Quem opta pelo regime autoritário não tem fé nem apreço pela criação artística. O pavoroso é que se acaba interiorizando um sistema de controle das pessoas, ou porque querem manter a comunicação de alguma forma (fazendo concessões) ou porque as mais tímidas se amedrontam e partem para a abstração injustificada. O manto da meia liberdade assusta os tímidos, diminui a audácia dos corajosos e é sempre fatal para o país que a adota.

Veja - No romance em que você trabalha agora, sua liberdade de expressão está, de algum modo, cerceada?
CALLADO - Absolutamente. Em Quarup, tentei mostrar o extenso caminho de um homem da Igreja rumo à conscientização política dentro de um painel da vida brasileira. Em Bar Don Juan, tracei um panorama da chamada esquerda festiva, que conheci muito bem, com aquela impaciência do revolucionário que quer chegar rápido demais aos resultados. Neste, estou evocando a época dos seqüestros no Rio de Janeiro, em 1969, mas sem me fixar em nenhum deles factualmente. Não acompanho nenhum dos casos, mas procuro captar a atmosfera que predominou no Rio durante os seqüestros: todo aquele rebuliço de televisão, notícias, boatos de localização do seqüestrado, a movimentação do corpo diplomático e os seus temores diante da situação. Por outro lado, mostro o esforço das pessoas que estavam fazendo aquilo com a idéia de que seria possível, embora precariamente, chegar a uma conclusão revolucionária mais séria, o que, evidentemente, não conseguiram por não haver uma infra-estrutura favorável. Honestamente, não me senti pressionado a abrandar, embora seja manifesto que, dentro de um esquema desses, quase insensivelmente você começa a evitar determinadas coisas e a dizer outras de maneira diversa.

Veja - O que motivou sua escolha?
CALLADO - Foi a oportunidade de captar uma visão do tempo, da movimentação, das
esperanças que houve em torno de uma espécie de guerra tão precária como esta. Todo
esse sonho bastante irrealizável se contrapõe ao ponto de vista completamente distante e
indiferente dos diplomatas que aqui estavam na ocasião. Por isso, de vez em quando
aparece uma carta, desligada da trama, refletindo mais um ângulo da situação, que surge
constituída como um jogo de espelhos. Esta me pareceu a melhor forma, digamos assim, de abordar um tema político sem me amarrar demasiadamente à ação direta e permanente de contar uma história. Assim, obtêm-se os reflexos da situação em várias pessoas, situadas em pontos diferentes. Entretanto, mantenho o núcleo do romance absolutamente realista.

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